Por Jorge Luiz Souto Maior
Os cursos de Direito nas Faculdades ensinam,
em geral, as formas jurídicas, ou seja, o modo estático como o direito se
apresenta nas leis. Quando se trata de greve, por exemplo, a aula tende a
trazer um breve relato histórico dos movimentos dos trabalhadores e como a
greve de um ato ilícito se tornou um direito.
Esquece-se de dizer, no entanto, que essa
transformação jurídica trouxe consigo, também, a limitação ao exercício da
greve.
Além disso, a aula geralmente não traz um
estudo sociológico acerca da relevância política das greves, notadamente com
relação à sua influência nas mudanças sociais, conforme se verificou na
história do mundo capitalista desde a sua consolidação.
Assim, a greve resta examinada apenas na
perspectiva dos incômodos que gera.
E com esse alimento cultural contrário à
quebra da normalidade que a greve produz, deixa-se de abordar o direito de
greve e passa-se, em concreto, a examinar os limites do exercício da greve,
colocando em evidência os outros direitos que se chocam com o ato da greve.
Ao visitar os trabalhadores do Hospital
Universitário (na USP) no último dia 16 de junho, convidado que fui para lhes
falar sobre o direito de greve, deparei-me com a situação de tomar uma aula dos
trabalhadores, o que, de todo modo, para mim, tem sido uma constante.
Saindo do encontro, a única coisa que
conseguia pensar é como teria sido importante para os estudantes das Faculdades
de Direito terem estado naquele local, naquele instante, para uma conversa com
os trabalhadores em greve.
Aprenderiam o quanto uma greve acaba sendo
um momento importante para os trabalhadores saírem da cena do local de trabalho
e perceberem, dessa maneira, as condições em que atuam, assim como o quanto a
greve possibilita aos trabalhadores se compreenderem como um ente coletivo, ao
mesmo tempo em que permite um conhecimento maior sobre o que pensam e até como
vivem os demais colegas de trabalho.
Essa empolgação em torno de uma construção
coletiva foi muito perceptível no encontro com os trabalhadores do HU, sendo
relevante destacar que estavam presentes os mais variados profissionais, de
todos os setores do hospital.
Presentes ao local, os estudantes de
direito talvez conseguissem enfim entender que é o conjunto dos trabalhadores
que dá vida e mesmo sentido a uma estrutura produtiva, sendo os trabalhadores
os maiores detentores do conhecimento técnico e organizacional da unidade.
Vendo isso, entenderiam o quanto se mostra
artificial e imprópria a interferência judicial na greve, sobretudo quanto
determina como deve se dar a continuidade da prestação dos serviços, isto
porque despreza o conhecimento concreto do funcionamento da estrutura
produtiva, que segue, como dito, uma lógica coletiva. Essa interferência,
inclusive, pode provocar riscos aos trabalhadores que se vêem obrigados ao
trabalho, assim como aos destinatários de seus serviços, vez que se perde a
necessária coordenação das atividades e mais ainda quando profissionais de
outras áreas, que não entraram em greve, são deslocados ao exercício de
atividade para a qual não estão devidamente preparados.
Na greve do HU, sem intervenção externa, os
trabalhadores definiram por si a forma de continuidade dos serviços,
instituindo formas de revezamento, fazendo-o, inclusive, de modo a preservar o necessário
atendimento à população, mas sem se negarem o exercício da greve. E, no caso de
um hospital (como em várias outros empreendimentos) somente os trabalhadores
poderiam mesmo definir essa questão, pois são eles que sabem quais são os
serviços que não podem ter descontinuidade e quais são os profissionais que
devem atuar em cada momento específico.
Verificariam os estudantes que a greve é
possível, portanto, mesmo em atividades essenciais e que os trabalhadores têm a
responsabilidade necessária para definirem, sozinhos, como a greve deve ser
exercida. Aliás, constatariam, como já constatei em várias outras greves, o
quanto os trabalhadores grevistas consideram essencial o seu trabalho e como,
de fato, desejam retomar as atividades o mais rápido possível, com as melhoras
vislumbradas, é claro, que não são sempre remuneratórias.
No caso da greve do HU, por exemplo, os
trabalhadores estão procurando denunciar como a deficiência dos materiais
utilizados acaba pondo em risco os pacientes, sendo certo, também, que a
precariedade das condições de trabalho, inclusive, com desrespeito ao limite
constitucional das horas de trabalho, gera esse efeito, atingindo os
trabalhadores, os quais, assim, no exercício da atividade de garantir a saúde
alheia vêem prejudicada a sua própria saúde.
Seria possível aos estudantes ver o quanto
a greve acaba fazendo muito bem para o ambiente de trabalho e como os
trabalhadores se sentem felizes e animados ao se perceberem integrados a um ato
de luta pela mudança dos problemas que diariamente identificam.
Essa felicidade, no entanto, é
entrecortada por tensões e medos, provocados, exatamente, pelo Direito, que é
chamado pelo empregador para autorizar descontos de salários; impor, de baixo
para cima, uma dinâmica de trabalho, que não preserva o interesse coletivo e
que beneficia o “fura-greve”, o qual só vislumbra seu benefício individual ou
que não adere à greve por medo ou pressão do superior hierárquico; e vislumbrar
a supremacia do direito de ir e vir sobre todos os benefícios da greve.
O estudante do direito, indo compreender,
por dentro, o ambiente da greve, poderia sentir o quanto o direito de greve não
tem servido aos trabalhadores, sendo, isto sim, instrumento de repressão, que
se utiliza até o ponto de permitir o uso de força policial e de legitimar
condutas de represália do empregador pela adesão de trabalhadores à greve,
chegando a promover a dispensa dos trabalhadores que mais se mostram indignados
com as injustiças praticadas pelo direito.
Sentiriam, assim, um misto de alegria e
tristeza. A alegria que advém, naturalmente, de todo processo de aprendizado,
pelo qual, inclusive, se teria a oportunidade de compreender os benefícios
concretos da greve, verificando o quanto ela se apresenta, efetivamente, como
essência do processo democrático. A tristeza ficaria por conta da constatação
de que o seu objeto de estudo, o direito, que deveria servir para garantir a
greve, acaba sendo utilizado para causar sofrimento aos trabalhadores.
No caso da greve do HU, de todo modo, o
que pude ver foi trabalhadores conscientes da importância da sua ação e felizes
por estarem lutando com organização coletiva e senso de responsabilidade,
agindo de uma forma tal que mesmo o direito não lhes poderá calar, a não ser
por imposição da lógica de um estado de exceção, de índole ditatorial, o que,
infelizmente, ainda insiste em nos assombrar.
A mim o que resta é apenas dizer publicamente o que
disse aos grevistas do HU naquela manhã de segunda-feira: obrigado pela aula!
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