Era uma vez na Copa...: junho 2014

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Não chores por mim seleção brasileira



Por Jorge Luiz Souto Maior

A grotesca anedota de que a Copa no Brasil seria importante para que enfim os europeus soubessem que a capital do Brasil não é Buenos Aires parece ter encontrado um eco invertido na realidade, pois a partir de imagens descontextualizadas que venham a se divulgar dos jogos da seleção brasileira é possível que se imagine que a melancolia e o drama do tango argentino formam a característica da nação brasileira, que, ademais, fisionomicamente, não se encontra completamente representada na torcida.

As partidas da seleção brasileira, dada a carga emotiva que tomba sobre os jogadores e a comissão técnica, estão muito mais parecidas com um tango argentino do que com um samba brasileiro. Ou seja, se a ideia era “vender” a imagem do Brasil, isso não está dando certo. Cumpre deixar claro que parecer com a Argentina não é demérito algum, muito pelo contrário. Só que, como diria Jorge de Altinho, em gravação memorável de Geraldo Azevedo, "gosto de Juazeiro, mas adoro Petrolina".
O problema é que o jogo comercial e os interesses políticos, acompanhados de intensa mídia, debruçaram sobre os ombros dos jogadores (e da comissão técnica) da seleção brasileira a carga dos destinos da nação. E o que se tem visto é que os jogadores estão desabando emocionalmente. Tentam, com muito esforço, canalizar positivamente a energia, mas a carga é muito alta e acabam ficando pesados e, no final, desabam.
É oportuno, sobre este aspecto, fazer um paralelo com o que se tem verificado no mundo empresarial, que já repercute também no setor público. Refiro-me às tais novas “estratégias de gestão de pessoal”, pelas quais, começando com elogios e estímulos, procura-se, por meio da imposição de metas quase sempre inatingíveis, extrair dos trabalhadores a maior produção possível, estratégias que se complementam com a pressão constante do desemprego e a técnica de comparações, colocando-se os trabalhadores uns contra os outros no processo de competição na busca de melhores resultados, que são publicizados, possibilitando o desenvolvimento de um ambiente de trabalho altamente assediante e moralmente deturpado, tudo maquiado pelas promessas de concessão de promoções e pagamento de prêmios, quando não se resume à mera garantia de manutenção do emprego, chegando-se mesmo a jogar sobre os ombros dos trabalhadores a responsabilidade pelo sucesso da empresa.
O que se verifica com os jogadores da seleção brasileira é exatamente a mesma coisa, com um grau de tensão, concentrada, muito maior. Primeiro, são afagados, quase endeusados. Depois, são cobrados, comparados e, alguns, descartados, tudo sob o peso da responsabilidade de que sua performance seja condicionante da solução dos problemas do país, sendo que nesta perspectiva o título é o único resultado aceitável.
O fato é que a condição humana não suporta a tensão provocada por situações como estas. E por mais que a ideologia empresarial tente vender a ideia de que o trabalhador deve saber lidar com as pressões, o limite humano sempre falará mais alto, impondo ao trabalhador uma retração do ritmo de trabalho, seja por acometimento de uma doença, seja por uma total aversão à situação, que provoca, ao contrário do pretendido, desestímulo e desânimo, o que prejudica o seu desempenho e, paradoxalmente, aumenta a cobrança que o trabalhador faz de si mesmo, gerando perda da autoestima e, no extremo, a loucura.
Mas, se ao meio empresarial parece cômodo lidar com essa situação, pois o trabalhador é tratado como um elemento descartável, que pode sempre ser substituído por outro, deixando-se o custo do assédio organizacional, que é o exército de doentes, com a Seguridade Social, a mesma ilusão se desfaz muito mais rapidamente quando falamos de uma seleção em um campeonato curto como a Copa do Mundo de Futebol. Ora, se o Paulinho vai mal, coloca-se o Fernandinho. Se o Fernandinho não corresponde, chama-se outro... Mas, há limites, pois são apenas 23 os jogadores, e quando se verifica que a pressão atinge o craque do time, que é insubstituível, percebe-se, claramente, como a estratégia de gestão é destrutiva, até porque não se fazem seleções, empresas e sociedades sem pessoas, sem tratamento humano e sem política de salubridade e sanidade.
E a dificuldade para os trabalhadores aumenta quando estes incorporam o discurso organizacional e tendem a ver a pressão como normal, atraindo para si toda a responsabilidade do sucesso próprio e da instituição.
É o que se verifica, concretamente, com os jogadores da seleção brasileira, que mesmo sofrendo as consequências de um assédio desumano culpam-se pelos maus resultados (se consideradas as expectativas criadas) e minimizam os efeitos deletérios da pressão, que são visíveis nos choros e nas fisionomias, assumindo-os como uma característica pessoal e chegando mesmo a encontrar uma justificativa altruísta para tanto.
O grande goleiro Júlio César disse que chorou antes da cobrança dos pênaltis porque é emotivo mesmo e, depois, dedicou as defesas que fez aos 200 milhões de brasileiros.
Mas, é importante que os jogadores tenham a consciência de que não devem suportar essa carga, que, de todo modo, é plenamente artificial, na medida em que, concretamente, os problemas sociais do Brasil não se resolverão caso a seleção brasileira se consagre campeã. Aliás, nem mesmo os problemas da preparação para a Copa serão corrigidos.
Ademais, a parte da nação brasileira que sofre as consequências da injustiça social, que não foi convidada para a festa nos estádios, está em luta por seus direitos e tem a plena consciência de que somente a sua atuação política, pelos meios que tiverem à sua disposição, é que trará as necessárias mudanças que precisam, sendo oportuno deixar claro que muitos daqueles que têm ido aos estádios, mesmo com uma condição econômica mais favorável, têm a consciência de que mudanças sociais são necessárias, pois a coesão de 200 milhões, juntos em torno da seleção, é uma ilusão que não resiste à realidade das diferenças econômicas, que se refletem social e culturalmente.
Vários setores da sociedade brasileira, que têm a percepção de que no modelo de produção capitalista o que se tem em concreto é uma sociedade de classes, estão em luta. E para os trabalhadores, por exemplo, a luta ainda será intensa, pois a assimilação do governo à lógica empresarial da preparação para a Copa lhes trouxe várias conseqüências negativas: a intensificação da terceirização, que agora está em risco de se consagrar em processo sob julgamento do Supremo Tribunal Federal; a proposta, em trâmite no Congresso Nacional, de minimização dos efeitos do trabalho em condições análogas à de escravo; a proposta, também em trâmite na mesma Casa, de retroceder na limitação da jornada dos motoristas e seus ajudantes; a suspensão, determinada pelo Ministério do Trabalho, da aplicação da NR 12 (Segurança em Máquinas e Equipamentos); o aumento do prazo do trabalho temporário; e a intenção, já anunciada, do governo federal em agradar o setor empresarial, para garantir a reeleição, o que pode viabilizar que se levem adiante propostas ainda mais precarizantes, como a de abrir espaço ao trabalho voluntário, utilizado em larga escala na Copa, nas atividades empresariais, conforme já chegou a sugerir Luíza Helena Trajano Inácio Rodrigues, titular da Secretaria da Micro e Pequena Empresa, ao mesmo tempo em que dificulta, sobremaneira, o percurso do caminho no sentido contrário, qual seja, o da ampliação dos direitos dos trabalhadores, que requer, com urgência, a regulação, prometida desde 1988, da proteção contra a dispensa arbitrária, nos termos da Convenção 158 da OIT, a garantia de um efetivo direito de greve, inclusive no setor público, e a igualdade de direitos às trabalhadoras domésticas.
Os próprios jogadores de futebol, bem se sabe, pela instituição do Bom Senso Futebol Clube, que bem se poderia chamar Movimento Passe de Classe (conforme sugerido aqui), estão apenas nos primeiros passos para a consagração de seus direitos, individuais e coletivos, e muita luta ainda terão que implementar.
A superação das injustiças sociais, como preceito jurídico, é uma obrigação que se impõe, sendo certo que uma das maiores injustiças que se pode cometer é a de impedir que as vítimas da injustiça social e da intolerância tenham voz, mantendo-as órfãs de uma ação política institucional efetivamente voltada ao atendimento de suas necessidades.
A ordem jurídica está posta no sentido de coibir a intolerância e para reafirmar o compromisso, assumido internacionalmente, de respeito aos Direitos Humanos de índole social, reconhecendo, sobretudo, como fundamentais, os direitos de liberdade de expressão e de reivindicação, e constituindo um relevante instrumento para coibir todas as práticas repressivas, antissociais, antissindicais, antidemocráticas e discriminatórias.
O povo brasileiro está em ação e tem a perfeita consciência em torno da necessidade de lutar, tendo também a compreensão de que a luta não será fácil, carregada que segue de repressão e de criminalização, como vem ocorrendo com bastante intensidade na política de governo do Estado de São Paulo.
Ilustres jogadores e membros da comissão técnica da seleção brasileira saibam, portanto, que o povo brasileiro não está dependente da conquista do mundial para continuar sua luta. Claro que esses lutadores querem ver a seleção campeã, mas isso porque gostam de futebol e para poderem desfrutar de um justo e valioso momento de alegria. Um momento em paralelo à sua luta e não um substitutivo dela.
Só que esta alegria depende também de certa identidade cultural com a seleção. O que se quer ver, antes de tudo, são jogos de futebol, jogados com alegria e boa técnica, e não dramas, pois de dramas a realidade já está cheia, sendo certo que mesmo diante deles o povo brasileiro, como sempre realça Ariano Suassuna, não perde a leveza de espírito e um pouco de dramaticidade cômica.
Em suma, se não for para se engajarem em um discurso que pontue os problemas de uma sociedade social e economicamente injusta, denunciando os absurdos cometidos para a realização da Copa no que tange às remoções e aos imperativos da lógica do Estado de Exceção, apoiando, expressamente, a luta dos excluídos (sem-teto, sem-terra e desempregados), dos trabalhadores, dos estudantes, das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos índios, dos deficientes, o que seria uma força bastante importante, mas não essencial, até porque seria, cabe reconhecer, um ato bastante difícil e arriscado do ponto de vista profissional, o melhor mesmo é que os jogadores da seleção se visualizem como trabalhadores, que percebam o quanto é imerecida, artificial, exagerada e desumana a pressão que sofrem, e que busquem superar as dificuldades por meio de uma união interna, ao mesmo tempo em que, tirando dos ombros o peso dos problemas da sociedade, façam o que sabem fazer: jogar bola. E o façam com leveza, alegria e técnica, ao ritmo e ao balanço do samba, libertando-se do medo de errar e permitindo-se irreverência e improvisos.
Ou seja, deixem os problemas do país em outras mãos, não os carreguem nos ombros e os transfiram para os seus pés, pois isso os impede de flertar com o futebol arte, que não deixa de ser competitivo, por óbvio.
E se chorarem, porque chorar sempre é bom, não o façam em nome de 200 milhões de brasileiros, pois os que necessitam de mudanças estão em luta e sabem que deverão continuar lutando qualquer que seja o resultado da Copa e aqueles para quem a realidade está muito boa a Copa não é mais que um motivo para comemorar.
Enfim, fazendo um paralelo, também invertido, com o drama de Evita, a parcela da população em luta, se chamada a se pronunciar sobre o drama que se tem verificado nas partidas, diria: não chores por mim seleção brasileira!

quinta-feira, 26 de junho de 2014

A lógica do Estado de Exceção da FIFA morde mais uma vez: o caso Suárez



http://cde.3.depor.pe/ima/0/0/1/2/8/128737.jpg
(http://depor.pe/futbol-internacional/italia-vs-uruguay-luis-suarez-le-mordio-hombro-giorgio-chiellini-1019304?href=pultimas_2_2, acesso em 26/06/2014)

Por Jorge Luiz Souto Maior

Bater na mesma tecla é mesmo monótono, mas quem não sai do tom é a FIFA não eu.
Como tenho dito, a lógica do Estado de Exceção, que se configura quando se confere ao governante poderes amplos, para atuar sem os limites da ordem jurídica, em nome da preservação de interesses determinados, nem sempre revelados, abre-se o risco ao autoritarismo.
O que se verificou na preparação da Copa foi uma concessão dessa natureza do Brasil para a FIFA, que se acostumou, desde longa data, a agir com os parâmetros de um ditador.
Suárez foi julgado sem processo: sem oferecer defesa, sem ser ouvido. O julgamento foi sigiloso. Não houve apresentação de uma decisão fundamentada, baseada em provas produzidas em contraditório. As pessoas, inclusive, estão tentando adivinhar quais foram os critérios adotados para se chegar à punição.
De fato, o que se verificou foi uma supressão do Estado de Direito.
Claro, alguém dirá: “é só um esporte!”. Ocorre que não se podem criar vácuos na realidade social, nos quais os preceitos do Estado de Direito não incidam.
Mesmo a necessidade de um julgamento rápido, para dar a devida continuidade ao evento, não é motivo suficiente para que se abra mão do devido processo legal, o qual pode ser rápido, sem ser supressivo do fundamental direito de defesa.
“Mas, defender-se do quê, se as imagens dizem tudo?” Indagarão outros... Ora, se essa lógica valesse ninguém poderia mais dormir tranqüilo, pois o totalitarismo de Estado estaria pronto para levar cidadãos a punições, sem processos, a partir do argumento da existência de evidências.
Aliás, na linha aberta do Estado de Exceção para a Copa, vem se assistindo, no Estado de São Paulo, a criminalização de manifestantes, levados sumariamente a prisões, sob a acusação do cometimento de crimes, tendo como provas indícios e presunções, consideradas como tais pelos próprios “julgadores”.
A questão no caso do Suárez nem é só essa. Mesmo que se possa sustentar que a punição de suspensão por nove jogos foi justa, dada a clareza das imagens, a gravidade do ato, o histórico de reincidência do jogador e a necessidade de conferir estabilidade para a devida continuidade do evento esportivo, o poder ilimitado que se concedeu à FIFA a permitiu ir bem além dos aspectos esportivos, atingindo o Suárez na sua condição de cidadão e, repita-se, sem o devido processo legal.
Como a FIFA se vê legitimada para julgar sem processo e punir sem qualquer parâmetro, pois sequer se sabe quais as normas foram aplicadas, acabou se achando no direito de furtar do Suárez direitos na qualidade de trabalhador e de consumidor, atingindo, ainda, as soberanias nacionais.
Ultrapassando os limites esportivos, a decisão da FIFA proíbe o Suárez de participar de qualquer atividade ligada ao futebol, impedindo-o, por quatro meses, de exercer o seu direito fundamental ao trabalho. E o proíbe, ainda, segundo se anuncia, até de adentrar em estádios de futebol.
E como o autoritarismo não tem mesmo limite, a FIFA, como informa Paulo Vinícius Coelho, se viu com o poder de determinar que o Suárez abandonasse a concentração,  banindo-o da competição e impedindo-o até de se alimentar no local, sendo que para tanto, pasmem, teve o apoio de força policial. Como dito por PVC, “Suárez teve de sair da concentração sob custódia policial”, tendo sido “expulso pela Fifa”[1].
A grande questão, do ponto de vista jurídico, é saber o que a polícia tem a ver com isso, afinal. E mais ainda: como uma instituição que está a serviço do Estado, para fazer valer a ordem jurídica, pôde ser chamada para conferir eficácia a uma decisão que não se baseou, em nenhum aspecto, nessa mesma ordem? E, ademais, que autoridade autorizou a polícia a intervir nessa questão? Ou, ainda: a polícia está sob o comando da FIFA?
Não são perguntas que precisam de respostas. São feitas apenas para demonstrar como o estado policial, baseado no autoritarismo, vai se consagrando nos espaços abertos pela lógica do Estado de Exceção.
Por fim, vejo muitas pessoas cobrando coerência da FIFA, fazendo paralelos com outras situações, mas o ditador não tem nenhum compromisso com a coerência. Esta só pode ter valor, juridicamente exigível, no Estado Democrático de Direito, que, por isso mesmo, precisa ser defendido com unhas e dentes!

terça-feira, 24 de junho de 2014

Greve no Hospital Universitário da USP: uma aula!





Por Jorge Luiz Souto Maior

Os cursos de Direito nas Faculdades ensinam, em geral, as formas jurídicas, ou seja, o modo estático como o direito se apresenta nas leis. Quando se trata de greve, por exemplo, a aula tende a trazer um breve relato histórico dos movimentos dos trabalhadores e como a greve de um ato ilícito se tornou um direito.
Esquece-se de dizer, no entanto, que essa transformação jurídica trouxe consigo, também, a limitação ao exercício da greve.
Além disso, a aula geralmente não traz um estudo sociológico acerca da relevância política das greves, notadamente com relação à sua influência nas mudanças sociais, conforme se verificou na história do mundo capitalista desde a sua consolidação.
Assim, a greve resta examinada apenas na perspectiva dos incômodos que gera.
E com esse alimento cultural contrário à quebra da normalidade que a greve produz, deixa-se de abordar o direito de greve e passa-se, em concreto, a examinar os limites do exercício da greve, colocando em evidência os outros direitos que se chocam com o ato da greve.
Ao visitar os trabalhadores do Hospital Universitário (na USP) no último dia 16 de junho, convidado que fui para lhes falar sobre o direito de greve, deparei-me com a situação de tomar uma aula dos trabalhadores, o que, de todo modo, para mim, tem sido uma constante.
Saindo do encontro, a única coisa que conseguia pensar é como teria sido importante para os estudantes das Faculdades de Direito terem estado naquele local, naquele instante, para uma conversa com os trabalhadores em greve.
Aprenderiam o quanto uma greve acaba sendo um momento importante para os trabalhadores saírem da cena do local de trabalho e perceberem, dessa maneira, as condições em que atuam, assim como o quanto a greve possibilita aos trabalhadores se compreenderem como um ente coletivo, ao mesmo tempo em que permite um conhecimento maior sobre o que pensam e até como vivem os demais colegas de trabalho.
Essa empolgação em torno de uma construção coletiva foi muito perceptível no encontro com os trabalhadores do HU, sendo relevante destacar que estavam presentes os mais variados profissionais, de todos os setores do hospital.
Presentes ao local, os estudantes de direito talvez conseguissem enfim entender que é o conjunto dos trabalhadores que dá vida e mesmo sentido a uma estrutura produtiva, sendo os trabalhadores os maiores detentores do conhecimento técnico e organizacional da unidade.
Vendo isso, entenderiam o quanto se mostra artificial e imprópria a interferência judicial na greve, sobretudo quanto determina como deve se dar a continuidade da prestação dos serviços, isto porque despreza o conhecimento concreto do funcionamento da estrutura produtiva, que segue, como dito, uma lógica coletiva. Essa interferência, inclusive, pode provocar riscos aos trabalhadores que se vêem obrigados ao trabalho, assim como aos destinatários de seus serviços, vez que se perde a necessária coordenação das atividades e mais ainda quando profissionais de outras áreas, que não entraram em greve, são deslocados ao exercício de atividade para a qual não estão devidamente preparados.
Na greve do HU, sem intervenção externa, os trabalhadores definiram por si a forma de continuidade dos serviços, instituindo formas de revezamento, fazendo-o, inclusive, de modo a preservar o necessário atendimento à população, mas sem se negarem o exercício da greve. E, no caso de um hospital (como em várias outros empreendimentos) somente os trabalhadores poderiam mesmo definir essa questão, pois são eles que sabem quais são os serviços que não podem ter descontinuidade e quais são os profissionais que devem atuar em cada momento específico.
Verificariam os estudantes que a greve é possível, portanto, mesmo em atividades essenciais e que os trabalhadores têm a responsabilidade necessária para definirem, sozinhos, como a greve deve ser exercida. Aliás, constatariam, como já constatei em várias outras greves, o quanto os trabalhadores grevistas consideram essencial o seu trabalho e como, de fato, desejam retomar as atividades o mais rápido possível, com as melhoras vislumbradas, é claro, que não são sempre remuneratórias.
No caso da greve do HU, por exemplo, os trabalhadores estão procurando denunciar como a deficiência dos materiais utilizados acaba pondo em risco os pacientes, sendo certo, também, que a precariedade das condições de trabalho, inclusive, com desrespeito ao limite constitucional das horas de trabalho, gera esse efeito, atingindo os trabalhadores, os quais, assim, no exercício da atividade de garantir a saúde alheia vêem prejudicada a sua própria saúde.
Seria possível aos estudantes ver o quanto a greve acaba fazendo muito bem para o ambiente de trabalho e como os trabalhadores se sentem felizes e animados ao se perceberem integrados a um ato de luta pela mudança dos problemas que diariamente identificam.
Essa felicidade, no entanto, é entrecortada por tensões e medos, provocados, exatamente, pelo Direito, que é chamado pelo empregador para autorizar descontos de salários; impor, de baixo para cima, uma dinâmica de trabalho, que não preserva o interesse coletivo e que beneficia o “fura-greve”, o qual só vislumbra seu benefício individual ou que não adere à greve por medo ou pressão do superior hierárquico; e vislumbrar a supremacia do direito de ir e vir sobre todos os benefícios da greve.
O estudante do direito, indo compreender, por dentro, o ambiente da greve, poderia sentir o quanto o direito de greve não tem servido aos trabalhadores, sendo, isto sim, instrumento de repressão, que se utiliza até o ponto de permitir o uso de força policial e de legitimar condutas de represália do empregador pela adesão de trabalhadores à greve, chegando a promover a dispensa dos trabalhadores que mais se mostram indignados com as injustiças praticadas pelo direito.
Sentiriam, assim, um misto de alegria e tristeza. A alegria que advém, naturalmente, de todo processo de aprendizado, pelo qual, inclusive, se teria a oportunidade de compreender os benefícios concretos da greve, verificando o quanto ela se apresenta, efetivamente, como essência do processo democrático. A tristeza ficaria por conta da constatação de que o seu objeto de estudo, o direito, que deveria servir para garantir a greve, acaba sendo utilizado para causar sofrimento aos trabalhadores.
No caso da greve do HU, de todo modo, o que pude ver foi trabalhadores conscientes da importância da sua ação e felizes por estarem lutando com organização coletiva e senso de responsabilidade, agindo de uma forma tal que mesmo o direito não lhes poderá calar, a não ser por imposição da lógica de um estado de exceção, de índole ditatorial, o que, infelizmente, ainda insiste em nos assombrar.
A mim o que resta é apenas dizer publicamente o que disse aos grevistas do HU naquela manhã de segunda-feira: obrigado pela aula!

domingo, 22 de junho de 2014

Em nome do futebol





(http://www.exorbeo.com/wp-content/uploads/2014/05/history-channel-estreia-a-serie-varzea-fc.jpg, acesso em 23/06/2014)

 Por Jorge Luiz Souto Maior

E eis que os primeiros jogos da Copa encantaram a todos. Belas jogadas, lindos gols e partidas emocionantes...

E, com isso, logo alguns se pronunciaram, afirmando que foi uma grande bobagem as manifestações contra a Copa, mesmo no que se refere à forma como esta foi preparada. Outros, ainda, passaram a se vangloriar de terem proporcionado a realização do evento, atraindo para si inclusive o sucesso do espetáculo até aqui produzido nos jogos.
O que se esquece, ou não se quer lembrar, é que o futebol produz esses efeitos sob quaisquer condições e em qualquer terreno. A própria história da popularização do futebol é marcada pelas possibilidades múltiplas desse jogo, que foge de qualquer controle e da maior parte das previsões.
Para haver futebol basta uma bola, que tantas vezes já foi uma latinha ou algumas meias acopladas. O campo, bem, o campo, dele não se exige muito... A várzea, afinal, foi o palco da difusão do futebol entre nós, destacando-se que foi a precariedade dos campos que nos proporcionou esse contato mais íntimo com bola.
Havendo um campo, bons jogadores e torcida, que carreguem consigo histórias de rivalidades, o futebol estará naturalmente apto a produzir os efeitos verificados nos primeiros jogos da Copa, como tem feito, aliás, por décadas, em inúmeros campeonatos por todo o mundo.
Isso não é mérito da FIFA ou de quem quer que seja: é do esporte em si e, claro, dos jogadores, com participação decisiva da torcida.
Verdade que bons estádios, boas transmissões de TV e de rádio e boa organização para as partidas tornam o espetáculo bem mais agradável, mas não necessariamente mais emocionante. As condições externas, mesmo importantes, não são o que determina a qualidade do jogo.
Em suma, a ninguém é dado atrair para si a titularidade de uma partida de futebol e muito menos querer justificar atos e omissões em nome da emoção do futebol, esporte que transcende à FIFA, aos governantes e aos dirigentes.
O futebol carrega na essência a realeza de ser o esporte bretão. Não pertence a ninguém e só se dará verdadeiramente àqueles que lhe souberem amar!


sábado, 21 de junho de 2014

Estado de exceção contra a Costa Rica: e a gente com isso!?



http://p2.trrsf.com/image/fget/cf/images.terra.com/2014/06/20/10jogadorescostaricacomemoramgetty.jpg
(http://esportes.terra.com.br/costa-rica/jogadores-da-costa-rica-vencem-e-emocionam-na-comemoracao,8c95cb3639ab6410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html, acesso em 21/06/2014)

 Por Jorge Luiz Souto Maior

Vale insistir nos perigos do Estado de Exceção, pois uma vez aberta a porta do desrespeito à previsibilidade normativa não se tem mais parâmetros ou limites para criar regras particulares ou para negar, seletivamente, a sua vigência.
A FIFA, habituada às benesses das concessões neste sentido, oferecidas por diversos Estados, afoitos em obter os benefícios econômicos de participar da Copa do Mundo ou até de sediar o evento, já não se sente sequer constrangida em desrespeitar as suas próprias normas.
Pois não é que de forma totalmente inédita, contrariando todo o costume dos jogos de futebol, a FIFA, em vez de 02 (dois), convocou 07 (sete) jogadores da seleção da Costa Rica para o teste antidoping após a vitória sobre a Itália.
Por intermédio de sua conta oficial no Twitter, a FIFA tentou justificar sua conduta com o argumento de que cinco dos jogadores selecionados da Costa Rica ainda não tinham sido submetidos a testes que se realizaram antes da Copa. Mas, nunca agiu assim... E, ademais, agirá da mesma forma com relação a todos os outros jogadores que não foram submetidos aos tais testes?
A justificativa, portanto, é esfarrapada e só foi apresentada para não assumir o que de fato foi: um ato de autoritarismo.
Mas o problema maior nem é esse. O problema é saber se aqueles que se submeteram ao estado de exceção terão possibilidade de compreender o ocorrido e força para rejeitá-lo.
Como venho advertindo, o risco de se acomodar diante do desrespeito às regras do jogo, é o de perder a legitimidade para se opor aos atos autoritários. Veja-se, por exemplo, que todas as seleções, comprometidas com as formas de exceção exigidas pela FIFA, não se sentiram aptas, mesmo a Costa Rica, a se insurgir contra a situação.
Quem está de fora até consegue se indignar com relação ao ocorrido, como se deu com ex-jogador Diego Maradona: "Isso acontece porque dói a muitos que a Costa Rica passe e que não passem os campeões do mundo, porque se não os patrocinadores não pagam o dinheiro que lhes prometeram"[1].
A grande questão é: será que já não estamos por demais envolvidos para conseguir perceber todas as formas de autoritarismo que nos cercam?

terça-feira, 17 de junho de 2014

Sem greve. Sem transporte público. Sem jogo.




(http://noticias.band.uol.com.br/transito-sp/noticia/100000689945/transito-em-sao-paulo-fica-acimada-media-na-tarde-desta-terca.html, acesso em 17/06/2014)
Por Jorge Luiz Souto Maior

Por ocasião das greves dos rodoviários e dos metroviários em São Paulo, os trabalhadores em greve foram obrigados a voltar ao trabalho, obstando-se o exercício do seu direito, sob o argumento de que eram responsáveis por garantir aos demais cidadãos o direito ao transporte, tido como um direito fundamental, preservando-se, ainda, o direito de ir e vir.

Pois muito bem. Hoje, dia 17/06/14, pouco antes do jogo Brasil x México (que se estendeu após o início da partida), sem que nenhuma greve estivesse ocorrendo, milhões de paulistanos, de todas as classes sociais, foram violados no seu direito fundamental de ir e vir, isso também por total ineficiência quantitativa do transporte público. Lembre-se, a propósito, a comparação entre os quilômetros de vias de metrô nas principais capitais do mundo e o que se tem na cidade de São Paulo[1].

Sendo o transporte um direito fundamental, a obrigação de garanti-lo é antes de tudo do poder público, o qual, no entanto, promoveu o individualismo e a indústria do carro.

Se fosse mesmo para defender a população, as instituições públicas, consideradas as suas variadas formas de manifestação de poder, deveriam, isto sim, mostrar seu rigorismo, com imposição de multas e uso de força policial, para punir os "vândalos" que não cumpriram até hoje a sua obrigação de garantir transporte público eficiente aos cidadãos e que, cinicamente, diante de uma greve, para jogar os trabalhadores contra a população, evocam o direito fundamental ao transporte...

Não sendo assim, ou seja, se a preocupação com o transporte público não é o que, de fato, fundamenta a determinação para a continuidade do trabalho, o que resta é apenas uma aversão político-ideológica ao direito de greve, o que, de um ponto de vista dos interesses maiores da sociedade, mostra-se totalmente inconcebível, pois se os poderes instituídos não funcionam no sentido de efetivar os direitos sociais, somente greves e mobilizações sociais podem alterar essa triste realidade, que atinge a classe trabalhadora diariamente e não apenas em dias de jogos da Copa:  

http://somethingthisway.files.wordpress.com/2011/10/paraiso_linha_dois_verde.jpg
(http://somethingthisway.files.wordpress.com/2011/10/paraiso_linha_dois_verde.jpg, acesso em 17/06/2014) 

A propósito, os metroviários de Paris estão em greve desde o dia 10 de junho, há 07 (sete) dias, contra as propostas de reformas do governo, que consideram prejudiciais à qualidade do serviço público prestado.
 

[1]. http://www.cartacapital.com.br/politica/o-que-querem-os-metroviarios-em-sao-paulo-9253.html/

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Euforia pela seleção x descompromisso com o projeto social




 (http://noticias.bol.uol.com.br/fotos/copa-do-mundo/2013/12/17/lista-de-acidentes-e-problemas-em-obras-de-estadios-da-copa.htm, acesso em 14/06/2014)


Por Jorge Luiz Souto Maior

Enquanto cidadãos saem às ruas portando bandeiras e apitos, desfilando uma euforia de serem brasileiros “com muito amor”, o Ministério do Trabalho e Emprego divulga a notícia de que as despesas do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) deverão superar as receitas em R$ 12 bilhões em 2014 e R$ 19,9 bilhões em 2015[1]

Que despesas são essas? 31,9 bilhões, com seguro-desemprego; 16,9 bilhões, com empréstimos ao BNDES; e, 14,7 bilhões, para abono salarial[2].

O rombo, isto é, a diferença entre receita e gasto, se dá, sobretudo, pela insuficiência da base de incidência dos tributos destinados ao custeio dos benefícios sociais, que decorre do incentivo às contratações precárias, notadamente, a terceirização – que foi utilizada em larga escala nas obras dos estádios da Copa – , assim como do desrespeito reiterado, por parte de muitos empregadores, ao cumprimento das obrigações trabalhistas, o que, ao mesmo tempo, favorece ao aumento do desemprego, valendo lembrar que os trabalhadores empregados precariamente durante a preparação para a Copa acabaram, obviamente, engrossando a fila do seguro-desemprego.

Acrescente-se que os gastos com o BNDES aumentaram bastante também nos financiamentos das obras da Copa e, assim, o Fundo dos trabalhadores foi utilizado para financiar construção de estádios, correndo-se o risco dos próprios trabalhadores pagarem a conta. Lembre-se que desde 1º. de novembro do ano passado foram implementados maiores requisitos formais para o recebimento do seguro-desemprego, sendo que em agosto do mesmo ano “técnicos” do Ministério cogitaram elevar para oito meses de carteira assinada o requisito para a primeira solicitação do seguro, chegando a até 18 meses na terceira requisição, e reduzir o número das parcelas de pagamento a partir da segunda solicitação[3].

Ou seja, o rombo no FAT é um fator eficiente para demonstrar o quanto a racionalidade econômica para a Copa superou os interesses dos trabalhadores, mantidos sob o risco de perdas ainda maiores.

Num contexto mais amplo, a baixa arrecadação do FAT frente ao custo dos benefícios sociais que dele se extraem demonstra que há um enorme descompasso entre a euforia de portar a bandeira para torcer pela seleção brasileira e o efetivo sentimento de nação, que deveria advir, isto sim, do compromisso em torno do projeto constitucional de proteção ao trabalho, da preservação da dignidade humana, da função social da propriedade e do desenvolvimento da economia com base nos parâmetros da justiça social, visando a efetiva promoção da distribuição da riqueza coletivamente produzida. 

A desconsideração da importância desse projeto é o que explica tanto o rombo acima destacado quanto o fato de que nos estádios os cidadãos operários, que executaram as obras, não têm condições financeiras para neles entrar.

Parafraseando Lúcio Barbosa, na célebre canção, “Cidadão”:

Tá vendo aquele estádio moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Hora extra, terceirização
Pressão e acidentes prá contar
Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me chega um cidadão
E me diz desconfiado, tu tá aí admirado
Ou tá querendo roubar?
Meu domingo tá perdido
Vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio
Que eu ajudei a fazer