A Circular 12/2014 da CODAGE
(Coordenadoria de Administração Geral) da USP constitui um atentado ao direito
de greve e uma violência aos servidores da USP.
O ato, aparentemente baseado em
pressupostos jurídicos, apresentados em tese, tem, na verdade, o propósito de
ameaçar os trabalhadores em greve, impondo-lhes um sentimento de medo.
A Coordenadoria tenta escorar-se na
legalidade, mas lida com o ordenamento jurídico de forma conveniente, pinçando
apenas os aspectos que lhe interessa. Neste contexto, finge esquecer que a
greve dos servidores, que é um direito fundamental, constitucionalmente
assegurado, teve início porque a Administração da Universidade não cumpriu o
preceito da Constituição Federal que garante aos servidores púbicos o direito à
“revisão geral anual”, destinada à recomposição do poder aquisitivo da
remuneração (art. 37, inciso X).
A Administração da Universidade tenta
fazer crer que não pode dar o reajuste porque o percentual máximo destinado aos
gastos com pessoal já foi ultrapassado, como se o autor do ilícito pudesse ser
beneficiado pela própria torpeza. Ora, a Administração da Universidade destinou
verbas para várias finalidades indevidas e é completamente imprópria a
discussão a respeito de quem, pessoalmente, foi o responsável por isso. A USP não
é o reitor ou os membros do Conselho Universitário. Se houve gasto indevido a
instituição deve arcar com os efeitos dessa situação, buscando, pela vias
legais, a condenação pessoal dos eventuais responsáveis. O que não cabe é
deixar de buscar essa responsabilização e ao mesmo tempo punir os
trabalhadores, que nada tiveram com o ilícito praticado.
E os equívocos administrativos na seara do
orçamento são muitos, englobando, também, a própria falta de discussão a
respeito da base de cálculo do orçamento, sobretudo em razão da expansão mal
programada da Universidade, havida nos últimos anos.
Em suma, a Universidade está em plena
ilegalidade frente aos seus compromissos salariais com servidores e professores
e tenta fazer crer que os trabalhadores em greve é que estão cometendo alguma
ilegalidade.
Mas que fique bastante claro: do ponto de
vista estritamente jurídico, os trabalhadores (servidores e professores) não
estão em greve por melhores condições de trabalho. De fato, estão em greve como
forma de resistir à ilegalidade cometida pela Universidade, tentando, pela ação
política (autorizada por lei), recompor a autoridade da ordem constitucional.
Lembre-se que a ilegalidade da
Administração ainda se torna maior quando esta se recusa a implementar uma
negociação efetiva com as categorias em greve.
Na realidade vivenciada na USP é
inconcebível sequer sugerir que a greve de servidores e professores (com apoio
essencial dos estudantes) seja ilegal ou abusiva e tanto a Administração da
Universidade sabe disso que até hoje, passados 57 (cinquenta e sete) dias, não
se predispôs a entrar com ação na Justiça para interromper a greve por decisão
judicial.
E artificializar a situação fez tão mal à Administração
da Universidade que esta acabou aprofundando-se na ilegalidade ao tentar “massacrar”
aqueles que deveria tratar como a essência da instituição (os servidores e
professores), mas que passou a considerar como adversários a serem abatidos.
Em meio ao contexto das ilegalidades
cometidas, a Administração da Universidade viu-se legitimada a invocar a Lei n.
7.783/89 para ameaçar os servidores com o corte de salário e para chamar de
“ímprobos”, ou seja, desonestos, os trabalhadores que registram seu
comparecimento ao local de trabalho, mas que não trabalham.
Ora, a Lei n. 7.783/89, que em muita
medida já é restritiva do direito constitucional de greve, deve ser aplicada
por inteiro e não seletivamente, devendo ser considera, também, a experiência
jurisprudencial que lhe diz respeito.
Do ponto de vista concreto, somente há
desconto de salário na greve quando esta é considerada ilegal ou abusiva. Do
contrário, a jurisprudência trabalhista jamais recusa aos trabalhadores em
greve considerada legal o direito ao salário.
Conforme Ementa, da lavra do Dr. Rafael da
Silva Marques, aprovada no Congresso Nacional de Magistrados Trabalhistas,
realizado em abril/maio de 2010: “não são permitidos os descontos dos dias
parados no caso de greve, salvo quando ela é declarada ilegal. A expressão
suspender, existente no artigo 7º. da lei 7.783/89, em razão do que preceitua o
artigo 9º. da CF/88, deve ser entendida como interromper, sob pena de
inconstitucionalidade, pela limitação de um direito fundamental não-autorizada
pela Constituição federal”.
Ora, se a greve é um direito fundamental
não se pode conceber que o seu exercício implique o sacrifício de outro direito
fundamental, o da própria sobrevivência. Lembrando-se que a greve traduz a
própria experiência democrática da sociedade capitalista, não se apresenta honesto
impor um sofrimento aos trabalhadores que lutam por todos, que, direta ou
indiretamente, se beneficiam dos efeitos da greve.
Para negar aos trabalhadores o direito ao
recebimento de salário no período em que exercem o direito de greve escora-se
em previsão contida na Lei n. 7.789/89, que assim dispõe:
“Artigo 7º - Observadas as condições
previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de
trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o
período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da
Justiça do Trabalho.”
Imagina-se que este dispositivo tenha
retirado dos trabalhadores o direito de recebimento de salário durante o
período da greve, mas de fato, vale reparar, não há disposição expressa neste
sentido. Aliás, nem poderia ser diferente porque a perda do salário só se
justifica em caso de falta não justificada ao trabalho e é mais que evidente
que a falta de trabalho, decorrente do exercício do direito de greve, está mais
que justificada, afinal a greve é um direito do trabalhador.
Quando o trabalhador está exercendo o
direito de greve sequer se pode falar em “falta ao trabalho”, vez que a greve
pressupõe ausência de trabalho e não ausência ao trabalho. Os trabalhadores em
greve comparecem ao local de trabalho, para fazerem suas manifestações e
reivindicações.
Neste sentido, aliás, fazer constar a
presença nos registros de freqüência não é desonestidade alguma, até porque há
várias modalidades de greve, dentre elas, por exemplo, a conhecida “operação
tartaruga”. O trabalhador em greve, idealmente, deve comparecer ao local de
trabalho e não trabalhar e se comparece pode, e deve, registrar sua presença,
pois a greve, legalmente falando, é ausência de trabalho e não fuga do local de
trabalho.
É interessante perceber que em alguns
locais de trabalho a experiência humana, dos pontos de vista cultural,
acadêmico, político e democrático, é muito mais intensa nos períodos de greve,
quando se deixa de lado o trabalho burocratizado, mecanizado, e se estabelece
um debate aberto sobre a própria estrutura na qual o trabalho se insere.
Tratando, ainda, da questão
jurídico-formal, cumpre acrescentar que na lei não há diferença entre
interrupção e suspensão do contrato de trabalho, embora a doutrina tenha criado
essa diferenciação em razão da expressão trazida como denominação do Capítulo
IV da CLT: “Da Suspensão e da Interrupção”.
O fato é que embora o nome do Capítulo
seja o acima aludido, a própria CLT não definiu as figuras em questão. Por esforço
classificatório, a doutrina nacional tratou de separar as hipóteses. Mas, sem o
pressuposto de uma definição legal, formou-se na doutrina uma divergência a
respeito do assunto, pois para alguns a suspensão seria caracterizada pela
ausência total de efeitos jurídicos[1] enquanto
que para outros a produção de alguns efeitos não a descaracterizaria[2]. Para
estes últimos, o elemento diferenciador seria apenas o recebimento, ou não, do
salário, com a conseqüente contagem do tempo de serviço.
Na verdade, a discussão acadêmica acerca
do melhor critério para separar interrupção e suspensão tem pouca ou nenhuma
importância, pois os efeitos jurídicos atribuídos a cada situação devem ser determinados
na lei.
Assim, quando a Lei n. 7.783/89 traz a
expressão suspensão não se pode atribuir a ela os efeitos jurídicos postos por
uma classificação de caráter doutrinário, que sequer se apresenta de forma
unânime.
O que importa, unicamente, é saber o que a
lei considera suspensão da relação de emprego e quais efeitos jurídicos são por
ela, a lei, mantidos vigentes durante o período correspondente, sabendo-se que
o efeito da manutenção da relação de emprego está sempre presente.
Neste aspecto não pode haver dúvida de que
a Lei n. 7.783/89, em nenhum momento, autorizou o desconto dos salários no
período da greve. O que diz a Lei é: “...devendo as relações obrigacionais,
durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão
da Justiça do Trabalho.” – grifou-se
Ora, o que se estabelece é que os efeitos
obrigacionais não estão fixados pela lei. Assim, não pode o empregador,
unilateralmente, dizer que está desobrigado de pagar salários durante a greve,
pois não terá base legal nenhuma a embasá-lo.
E, como se está procurando demonstrar, o
direito do recebimento de salário é um efeito obrigacional inegável na medida
em que, por lei, o não recebimento de salário somente decorre de falta
injustificada ao serviço, ao que, por óbvio, não se equipara a ausência de
trabalho em virtude do exercício do direito de greve. É evidente que o
exercício de um direito fundamental, o da greve, não pode significar o
sacrifício de outro direito fundamental, o do recebimento de salário.
A interpretação extensiva dos termos da
lei, implicando na negativa ao direito de recebimento de salários, é imprópria
mesmo sob o prisma das técnicas de interpretação do direito comum, quando mais
em se tratando de um direito social. É evidente que a preocupação do
legislador, ao dizer que a greve “suspende o contrato de trabalho”, foi a de
dar ênfase à preservação da relação de emprego, evitando que o empregador
considerasse os dias parados como faltas ao trabalho e propugnasse pela
cessação dos vínculos jurídicos. É o que consta, ademais, com todas as letras
no parágrafo único do artigo 7º., da lei em questão: “É vedada a rescisão de
contrato de trabalho durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores
substitutos, exceto na ocorrência das hipóteses previstas nos artigos 9º e 14.”
Lembre-se que as ameaças econômicas, como
represálias à adesão a atividades sindicais – e a greve é a principal delas –
para intimidar e gerar medo nos trabalhadores, constituem atos antissindicais,
tais como definidos na Convenção 98 da OIT (ratificada pelo Brasil, em 1952),
que justificam, até, a apresentação de queixa junto ao Comitê de Liberdade
Sindical da referida Organização.
Em suma, ainda que em tese se pudesse
sustentar que a greve suspende os contratos de trabalho, gerando o não
pagamento de salários, não se aplicaria tal interpretação jurídica ao caso
concreto vivenciado na greve da USP, ainda mais porque a manutenção dos
salários está integrada ao patrimônio jurídico dos servidores como efeito do
direito consuetudinário. Lembrando-se também que o direito não existe em
abstrato, vale reparar que o argumento a favor do desconto dos salários no
contexto atual serve unicamente para causar mal estar aos trabalhadores que,
sabidamente, estão integrados a uma greve legal, que mesmo sob a lógica da
posição assumida pela Universidade não geraria esse efeito, ainda que a greve
fosse judicializada. Ademais, nenhum direito pode ser exercido com o propósito
exclusivo de causar sofrimento ao outro, ainda mais quando se pretende por esse
sofrimento persuadir o cidadão a abrir mão de um bem, constitucionalmente
assegurado como um direito fundamental.
Esperava-se que Universidade assumisse o
grave problema da ausência de reajuste salarial que a má administração gerou
aos trabalhadores, que são, como deveria saber, a essência da instituição, e
que buscasse os meios necessários para solucionar a questão, negociando de
forma clara e direta com as categorias em greve, e não que tentasse mascarar os
próprios erros, jogando sobre os ombros dos trabalhadores o peso de uma
pretensa ilegalidade, avaliada a partir de uma visão seletiva e conveniente do
ordenamento jurídico, e que cometesse, ainda, o despropósito de violentar os
trabalhadores com a acusação rasteira e desrespeitosa da desonestidade.
Não sendo assim, o mínimo que se pode
aguardar no presente momento, para que a crise não se instaure de forma
incontornável na Universidade, é que a Coordenadoria de Administração Geral
tenha a grandeza de rever seu posicionamento.
[1]. SÜSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª
ed. Vol. 1. São Paulo: Ltr, 2003, p. 281 e 301.
[2]. CATHARINO, José Martins. Contrato de emprego: comentários aos arts. 442/510 da CLT. 2a ed. Rio de Janeiro: Edições
trabalhistas, 1965, p. 242; DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr. 2002. p. 1032.
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